Já havia algum tempo que a mãe de Jorge* estava tendo lapsos de memória. Até que um dia, ela ficou em casa sozinha por cerca de uma hora quando o filho foi levar o pai ao médico. Já receoso do que poderia acontecer, ele ligou para ela do hospital para checar se estava tudo bem – mas não a encontrou mais no apartamento.
Horas depois, ela retornou para casa com a roupa rasgada e as pernas raladas – havia caído no caminho. O filho, então, não se conteve e chorou de desespero na frente da mãe. “Eu realmente não sabia mais o que fazer”, diz.
Marcela* viveu situação semelhante. Sua mãe também tinha problemas de memória, mas estava perfeitamente saudável, enquanto o pai estava com outros problemas clínicos que precisavam de cuidados. Para ir ao médico com ele, a tática foi levar os dois juntos para o hospital.
Na hora do exame, Marcela disse à mãe: “fica aí rapidinho enquanto eu entro para o exame com o papai”. Poucos minutos depois, quando voltou à sala de espera, a mãe não estava mais lá. Ela foi encontrada três dias depois, do outro lado da cidade, com as roupas sujas e rasgadas, sem dinheiro nenhum. Foram três dias de agonia para Marcela, sem saber o que poderia ter acontecido com a mãe.
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Os dois casos acima se referem a pessoas que sofrem da doença de Alzheimer, o tipo mais comum de demência que existe no mundo, que atinge 30% da população brasileira acima de 80 anos, segundo dados do Ministério da Saúde.
Ela age matando os neurônios e interfere na capacidade cognitiva das pessoas. “As pessoas acham sempre que não vai acontecer. Porque como o paciente tem muitas funções preservadas, está ‘bem’, a família pensa: vou deixar ele aqui e já volto. Mas isso é suficiente para o paciente se encontrar num ambiente que ele não sabe onde é e sair andando. Não precisa de muito tempo, precisa de um minuto. Então quando o familiar pergunta: mas ele ainda pode ficar sozinho? Eu digo: nunca, depois que tem demência”, explicou à BBC Brasil Rose Souza Lima, psicóloga e gerontóloga que atua há mais de 25 anos no tratamento de pessoas com demência.
No Brasil, estima-se que existam cerca de 1,2 milhão de pessoas com Alzheimer – são cerca de 100 mil novos casos por ano. Não se sabe a causa da doença, mas o modo de ação dela vem normalmente de uma proteína chamada betamiloide, que se deposita no cérebro em algumas áreas específicas, e vai formando placas e causando danos na comunicação dos neurônios.
A primeira característica mais forte desse problema é a perda da capacidade de fixar informações novas – ou seja, da memória recente.
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Basicamente, você diz algo agora para uma pessoa com Alzheimer e, em questão de minutos, ela pode não mais se lembrar do que foi dito – e, de repente se vê em um lugar ou situação sem saber o que a levou até lá.
“A pessoa não perde exatamente a memória, ela perde a capacidade de fixar a informação nova. Então é como se ele tivesse um caderno cheio de informações só do passado, que também vão se deteriorar com o passar do tempo”, explicou Rose.
Não existe uma cura para o Alzheimer, mas há medicamentos que conseguem retardar o avanço da doença – eles não conseguem conter o avanço dela, mas a piora do quadro vem de forma mais lenta.
“É uma coisa complicada de entender como é essa limitação. É um grande aprendizado, até lidar com essa perda, porque é uma perda em vida, na verdade”, contou Jorge.
Diagnóstico
O diagnóstico de Alzheimer não é preciso e pode causar muita confusão no início. Não existe um exame específico que traga um resultado positivo ou negativo para a doença. Sendo assim, o que se faz é uma análise completa com exames físicos e psicológicos para o que se chama de “diagnóstico diferencial” – nele, eliminam-se outras possibilidades de doenças para aí então concluir que é Alzheimer.
“O diagnóstico de certeza é só pós-morte. Em vida, a gente tem critérios de probabilidade: muito provável, provável, possível ou não provável. Então você pede exames para descartar outros problemas e ver se tem indícios de que é Alzheimer”, afirmou à BBC Brasil Renata Areza-Fegyveres, neurologista e pesquisadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas.
“Existe um consenso mundial que dá diretrizes para os médicos investigarem. Você analisa o histórico da pessoa, o exame clínico, neurológico, avaliação cognitiva breve, testes de rastreamento. Quando você faz toda a avaliação e é um médico com experiência, você consegue atingir um grau de certeza de 95%.”
Os primeiros sinais para se atentar segundo as especialistas são a perda de memória recente e a mudança repentina no comportamento. “Muitas vezes, o diagnóstico inicial vem como depressão, mas era Alzheimer, porque os sintomas são semelhantes na questão do distúrbio de comportamento”, explicou Rose.
Uma vez confirmado o quadro de demência, é importante iniciar de imediato dois tratamentos: o medicamentoso e o não medicamentoso. “É importante estimular essa pessoa sempre, a pessoa tem que continuar fazendo tudo enquanto puder, só que com supervisão”, disse Renata.
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Desafio dos cuidadores
Os especialistas costumam dizer que o Alzheimer é uma doença que afeta mais quem cuida do que quem efetivamente sofre dela. “O problema do paciente com Alzheimer normalmente não é dele, é um problema do outro. Porque o paciente normalmente acha que tá tudo ótimo com ele e não sofre”, pontuou Rose.
Pode começar com simples perguntas repetitivas durante um jogo de futebol na TV. “Quem está jogando aí” e “quanto tá” são as questões repetidas pelo avô de Eduarda* quatro ou cinco vezes ao longo dos 90 minutos. Ela respondia essas quantas vezes fosse necessário, mas não sabia o que dizer quando ele perguntava onde estava a esposa – recém-falecida. “A vovó não está mais aqui, lembra?”, ela dizia. Só que o avô não lembrava – e desatava a chorar.
“Essas questões são as mais difíceis. É muito voltada pra cada situação, não dá para generalizar. Tem pacientes que não sofrem quando você responde que a pessoa não está mais aqui, mas tem outros que entram em sofrimento, porque eles vivem o minuto ali. Então você pode falar: ah, ela foi ao médico, já volta. E assim seguir, para evitar esse sofrimento toda hora”, sugere Rose.
A carga emocional nesses casos pode ser tão grande para o cuidador a ponto de envolver até mesmo revelações familiares inesperadas. Foi o que aconteceu com Joana* e a irmã Lúcia*, casada com Francisco*. Os três já estavam na faixa dos 70 ou 80 anos, quando Joana começou a apresentar sinais de demência. E a partir daí, ela mudou seu comportamento com relação ao marido da irmã. Dizia coisas como “por que você não passou lá em casa ontem? Faz tempo que você não vai lá” – tudo na frente de Lúcia, que começou a desconfiar da relação dos dois.