Quando foi a última vez que você falou sobre morte sem aflição ou ansiedade? Uma visita ao Our Lady’s Hospice, em Dublin, me deu a oportunidade de revisitar alguns conceitos e crenças sobre o tema.
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Desde sempre a morte tem sido um mistério praticamente inalcançável, e de certa forma é melhor que fique assim, nas masmorras empoeiradas ou palácios de nosso imaginário. Um tabu certamente, a morte tem sido reinterpretada nos últimos séculos. Com a descoberta de doenças crônicas, incuráveis e incapacitantes, muitas hoje tratáveis e que oferecem um fim de vida com maior qualidade, o tempo do “fim” parece passar mais lentamente, oferecendo também mais consciência de sua própria finitude. O prolongar da vida é essencial e necessário, mas por outro lado há quem nos mostre que a consciência e aceitação da morte pode ser o melhor remédio para VIVER os últimos dias. A morte acabou finalmente chegando em mesas de bar, e não é difícil hoje encontrar quem discuta o tema junto com uma cerveja bem gelada.
A concepção de morte vem atravessando conceitos e “eras”. Foi temática buscada com afinco pela essência questionadora de filósofos, depois disso pelas teorias da ciência, mas antes de todo e qualquer questionamento, pela espiritualidade e pela religião.
Nos últimos séculos a consciência da morte encontrou outro grande desafio: temos maiores ferramentas diagnósticas, maior conhecimento acerca do corpo humano e de seus males. Uma gama de novos tratamentos, exames, injeções, comprimidos, nomes esquisitos e, a frente de tudo isso, profissionais aptos para traduzir o POR QUE do sintoma que aflige o corpo e a mente. Porém, como efeito colateral do avanço tecnológico e científico do último século, acabamos por enxergar a medicina como a salvadora de toda causa, mais precisamente de toda morte, que passou a ser a derrota da ciência, do esforço da família, da proteção do estado e da vida em si!
Mas naquele lugar cercado por grandes plátanos despidos pelo vento não havia morte nos detalhes. Não havia morte nos corredores e sem sombra de dúvidas não havia morte nos jardins repletos de comedouros para aves e esquilos, cheios de brinquedos para crianças e muitos bancos ao ar livre. Mas de fato a morte estava presente lá.
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Para aqueles que não estão familiarizados com o termo, Hospices são considerados abrigos para os que se despedem de familiares e de seu próprio mundo físico. Doenças terminais e incuráveis levam todos os anos milhares de pacientes para locais onde suas necessidades médicas e biológicas serão administradas, libertando o corpo de tratamentos que oferecem mais sofrimento do que benefício, mas também a mente e a alma recebem atenção incluindo questões culturais e espirituais na busca pelo conforto.
No Our Lady’s Hospice em Dublin, assim como em outros centenas de Hospices espalhados pela Europa, histórias estão sendo contadas pela última vez, despedidas conformadas estão sendo vividas e gargalhadas acontecem livres de pena, rancor ou mágoas. O lugar ganhou minha atenção e admiração desde o momento de minha chegada. Todos os residentes ali têm seu próprio jardim, vista para o verde das folhas e o colorido das flores, luz solar na janela ou então na pele se desejarem.
Tão importante quanto esse contato libertador com os elementos da natureza é o libertar-se do “Você não pode”, “É proibido”, “Vai lhe fazer mal”. O fim que se aproxima também liberta. Os sabores da vida ganham notas mais agradáveis nas barras de chocolate e nas Pringles espalhadas pelas mesas dos quartos. É possível ouvir sobre alguns pedidos como fish and chips e outras coisas que trazem a tona lembranças boas. Aquelas que estão guardadas com gosto especial em nossas “papilas afetivas”. O sorriso é automático e espontâneo quando algumas lembranças são levadas a boca.
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Tenho certeza que certas coisas têm gosto mais intenso quando se tem consciência de seu próprio fim acontecendo. Estar em um lugar que oferece certas oportunidades, como as últimas tragadas no cigarro, talvez as últimas doses de uísque ou de uma boa cerveja Guinness fazem parte do processo de morrer com dignidade.
Porém, morrer com dignidade não é um processo fácil, pelo contrário! Mas ali há esforço pela valorização da vida até seu verdadeiro fim. Todas as manhãs os profissionais se reúnem para discutir aqueles que se despediram e aqueles que vivem ali seus últimos momentos. Engana-se quem espera encontrar neurologistas, oncologistas e geriatras discutindo casos clínicos entre palavras mirabolantes, números de quartos, nomes de doenças ou dosagens de medicamentos. Além dos médicos participam também representantes das equipes de terapia ocupacional, psicologia, enfermagem, fisioterapia, assistência social, farmácia e da capelania.
Nada é relatado por números ou por doenças, mas por nomes, e nos corredores é possível ver profissionais com expressões humanas. É reconfortante identificar algo em comum conosco naquele que cuida e da suporte, seja isso sinal de empatia ou compaixão. Não é prazeroso estar dentro de um serviço mecânico sendo encaixado em protocolos e cuidado por pessoas mecanizadas. É confortador ouvir: eles morreram em paz em suas camas, ao invés de termos técnicos. Fazer parte da morte do outro é um momento íntimo e uma conexão que merece respeito.
Em hospices profissionais estão menos preocupados em cuidar de doenças, e mais focados em cuidar da vida oferecendo-lhe conforto. Isso vai muito além de medicamentos, e por isso é comum ouvirmos esses profissionais discutindo sobre familiares dos pacientes, sobre negócios de família e ciclos em aberto. Sobre medos e anseios. Sobre a vida que ali exerce seu efeito, não sobre a morte que ora vai tomar seu lugar, mas que ainda não chegara.
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Nos quartos nada de monitores, apenas a televisão tocando música ou algum filme! A vida encontra seu fim sem a orquestra de BIPES e vai e vens de números. Mais olho no olho do que telas e teclados. A médica aproxima-se dos pacientes e senta na borda de cada cama, algumas no nível do chão para evitar a contenção física – as amarras – mas também o risco de quedas e fraturas. Alguns deles em sono profundo, mas nada a impede de toca-los com sua mão e dizer: “Oi, aqui é a sua médica, e eu vim ver como a senhora está hoje.” Ela sabe que não haverá resposta, que a vida findará nas próximas horas naquela cama, mas reconhece também que ali ainda há vida!
A morte está nos detalhes. Está no tom de voz de quem fala com leveza. Está no tempo que se doa para quem pensa não ter mais nenhum. Está no sorriso que oferece calma. Está na ausência de protocolos que o obrigam a ser quem você não é. Na valorização de direitos universais como dignidade e respeito. Está nas paredes coloridas. No quadro de barco pendurado no corredor. Aquele profissional que nega à vida os direitos básicos para sua extinção, aquele que decide não respeitar a morte e sua imponência, mas que a enxerga como mera conseqüência de seu cotidiano…esse deixou morrer dentro de si aquilo que o fazia mudar a vida, e a morte do outro.
Our Lady’s Hospice & Care Service
Fundado em 1879 o OLH & CS conta hoje com mais de 200 leitos com pacientes em reabilitação ou então recebendo cuidados em fim de vida. A unidade de cuidados paliativos é hoje o maior Hospice da capital irlandesa.
Sob a filosofia de cuidar de pacientes em estágio terminal em um ambiente não hospitalar, a fundação conseguiu construir um abrigo para oferecer conforto físico, emocional e espiritual em um ambiente moderno, alegre, livre de paredes brancas e maquinário.
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Na ampliação do OLH & CS o principal objetivo era entrevistar familiares, pacientes e funcionários para entender o que poderia ser trazido para a nova unidade. Conforto e privacidade foram os pontos destacados, e assim surgiram os 36 novos leitos, 18 no St Catherine’s e 18 no St. Gabriel’s Ward.
Projetado para ter abundância de luz natural e contato com a natureza, OLH & CS exibe jardins com fontes e quartos totalmente automatizados. A ideia é justamente trazer o conceito de fina hotelaria muito mais do que visual clínico. Da sua cama o paciente tem completa autonomia para, por meio de controles e botões, abrir ou fechar cortinas, controlar a temperatura do piso aquecido, ligar e desligar a Smart TV e o rádio dentre outras funções. Vale destacar que o serviço oferecido é público e provido pelo governo irlandês.
O cuidado centrado no paciente oferece dignidade para quem vive seus últimos dias de vida. As decisões são deles. O que comer. Onde ir. Que tratamentos aceitar. Os familiares podem estar presentes 24 horas por dia sem restrição – há um sofá-cama disponível em cada quarto – e em uma das portas uma jacuzzi assistiva com cromoterapia e música conectada diretamente por seu dispositivo ou telefone.
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O investimento de mais de 13 milhões de euros veio de doações do público. Boa parte familiares de pacientes que ao longo dos anos encerraram sua trajetória nesse porto seguro. Hoje mais de 600 funcionários e 330 voluntários trabalham no complexo localizado em Harold’s Cross, Dublin.
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