Tudo começou com o sonho de conhecer HegeweyK, ou “Vila Demência” como ficou conhecido. A instituição que fica na Holanda já ficou famosa no mundo inteiro, mas ainda não tem réplicas. Uma cidade fictícia com todos os estabelecimentos funcionais: salão de beleza, restaurantes, bar, café, correio, mercado, ateliê, ruas e pequenos “prédios” de dois andares onde vivem seus habitantes.
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Ah, mas tem um detalhe! Essa cidade na verdade é um bairro murado. Os moradores são TODOS idosos com demência em estágio avançado, e os profissionais que lá trabalham, seja no bar ou no caixa do mercadinho, são treinados para lidar com esse público específico.

A primeira delegação brasileira da Dialog Health em expedição para Holanda.
Funciona mais ou menos como o “O Show de Truman”, aquele filme do Jim Carey onde ele vive em uma cidade cenográfica sem saber que tudo e todos ali na verdade são figurantes de um grande reality show. É lógico que essa comparação se resume a estrutura e parte da logística entre os dois modelos, mas em HogeweyK, que no papel é um residencial de idosos, a prática devolve a independência e a dignidade para idosos que vivem com Alzheimer e outras demências em estágio já avançado. Falaremos mais sobre isso em outro post.
Mas como chegar até lá? Não bastava bater na porta e pedir para entrar. Foi aí que a Dialog Health entrou no meu caminho. Uma empresa francesa focada em incursões na área da saúde. São viagens científicas e grupos de estudo em envelhecimento que viajam do Canadá ao Japão, da Escandinávia a Singapura e dos EUA a Holanda!
A Dialog montou um roteiro bastante completo, e junto com 13 amigos brasileiros formamos uma delegação multidisciplinar que ia de médicos e políticos a empresários e executivos.
Nas próximas colunas vocês vão conhecer os maiores detalhes dessa incursão que começou com uma recepção do Ministério Holandês de Saúde, na prefeitura de Utrecht, e passou por diversos residenciais que são referência para o mundo. Mas primeiro vamos entender um pouco o que faz da Holanda o melhor lugar para se envelhecer na Europa, e um dos melhores no mundo!
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Quando falamos em envelhecimento em um comparativo Holanda – Brasil, é importante destacar que o país europeu tem hoje cerca de 17 milhões de habitantes contrastando com nossos quase 215 milhões em território brasileiro. Consideravelmente menor em território e população, a Holanda enriqueceu com o passar dos anos, mesmo tendo enfrentado visceralmente os horrores da Segunda Guerra Mundial que destruiu parte do país e absorveu sua economia. Hoje a Holanda encontra-se em 17º colocado no ranking mundial de renda média anual por habitante (cerca de U$ 54.500,00) – quase 4 vezes mais que o povo brasileiro. Além disso a taxa de crescimento anual dessa renda é 8 vezes maior que a do brasileiro.
Uma economia hoje estabelecida que favorece a inovação em setores que já caminham com as próprias pernas. É possível sair do básico e das politicas públicas essenciais – o café com leite – para repensar o ontem e fomentar o amanhã. A Holanda está pensando fora da caixa enquanto nós ainda estamos estruturando a caixa onde vivemos. Não é à toa que 50 posições separam Brasil (56º) e Holanda (6º) no ranking mundial de apoio ao envelhecimento.
Boa parte dos países desenvolvidos enfrentam hoje a inversão da pirâmide etária, estamos vivendo mais e por consequência se faz necessário estruturar o território para uma população idosa. A reforma da previdência já está em andamento por lá enquanto é discutida com relutância aqui no Brasil, mas associado a isso outras mudanças foram implementadas. Tudo deve ser repensado, mas especialmente dois aspectos ganharam a atenção das políticas públicas no país europeu: um sistema de assistência responsável e integrado, e uma cultura que enxerga o fenômeno do envelhecimento como índice de qualidade de vida, e não como um problema não solucionável.
Com 26% da população acima dos 60 anos de idade – em contraste com nossos 14% no Brasil – a Holanda entendeu que a responsabilidade no envelhecimento de sua população deve ser uma carga compartilhada por três setores indispensáveis: o público, o privado (por meio de seguradoras) e o núcleo familiar. Essa tríplice vem sendo estruturada nas últimas décadas para que a assistência oferecida promova mais qualidade de vida e consequentemente de morte, unindo cuidados de longo prazo e políticas desburocratizadas.
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A principal premissa adotada pelo governo holandês está no termo AUTONOMIA. Todos os recursos oferecidos pela tríplice assistencial visam oferecer ao velho mais tempo governando a si mesmo dentro de sua casa. “Por mais tempo em casa” foi por sinal a frase mais ouvida em nossas palestras. Os benefícios de se viver mais tempo em um ambiente conectado com nossa identidade são incontáveis. É a promoção de uma dignidade que muitas vezes passa a ser a última grande diferença na vida do idoso, mas que infelizmente em alguns países é a primeira a se perder. O vínculo com nosso passado, com memórias afetivas e com nossa independência mora sob o mesmo teto que nós vivemos boa parte de nossas vidas, e a primeira escolha individual dificilmente será de bom grado a mudança para um ambiente institucionalizado.
Mas essa premissa não é de todo um interesse apenas no bem estar do idoso, mas também na saúde financeira do país. Faz parte da política holandesa de saúde um plano de saúde obrigatório. Por mês, todo habitante no país deve pagar – via seguradoras privadas – um seguro compulsório de gira em torno de 100 euros/mês. Como consequência dessa ação, as seguradoras desfazem a emancipação e passam a ser obrigadas a aceitar todo tipo de perfil, mesmo os que podem oferecer grandes riscos financeiros para a instituição. Enquanto no Brasil um plano de saúde para um idoso com certo grau de limitação será absurdo se comparado ao pago por um adolescente, na Holanda todos pagam o mesmo valor, porém são obrigados a contribuir – sob pena de multa em caso de não cumprimento.
É do interesse do governo, portanto, que esse idoso contribuinte passe mais tempo vivendo sob seu próprio teto, visto que o plano compulsório de saúde prevê internação (residenciais de idosos) e cuidados de longo prazo que geram muito mais custo. Para isso, ao invés de banir o sistema ou baratear as políticas públicas, a Holanda investiu em qualidade de vida, e colheu em consequência uma sociedade mais independente. Enquanto no Brasil apenas 35% dos idosos vivem sozinhos, na Holanda esse número sobe para 93.5%.
As responsabilidades são divididas da seguinte forma:
Estado -> Cuidados de longo prazo e de alto risco.
Seguro obrigatório -> Cobre cuidados clássicos e complementares.
Família -> Estruturação, demanda afetiva e fiscalização.
A Holanda faz parte de uma cultura onde o médico generalista é o primeiro a ser visitado, encaminhando então para especialistas se necessário. É ele o responsável pela triagem da necessidade e concessão de benefícios que o idoso passará a ter.
A partir dos 60 anos todo idoso participa de uma triagem, e de tempo em tempo ela é refeita para analisar se os benefícios propostos devem ser mantidos ou se algo deve ser acrescentado. Com o surgimento de sintomas demenciais – Alzheimer por exemplo – o idoso passará a ter em primeiro momento uma assistência dividida entre a estruturação familiar e o home care (cuidadores de idosos / enfermagem) dentro de sua casa. Com a progressão da doença será constatado em nova triagem a necessidade de cuidados de longo prazo e maior complexidade – residenciais de idosos, também pagos por uma associação entre estado e seguradoras, sem custo para o idoso.
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O município deve reservar 50h por ano de seus médicos contratados para visitas a domicílio, aumentando o tempo do idoso vivendo em sua própria casa. Esses centros avaliativos de triagem não estão diretamente ligados ao governo ou a instituições privadas. Dessa forma garante-se que toda decisão tomada é imparcial e não leva em conta a economia dos recursos garantidos por lei.
Quando falamos em residenciais de idosos temos que ter em mente uma gestão diferenciada no sistema holandês. Mais de 90% das ILPI’s (Instituições de Longa Permanência para Idosos) são públicas, pagas exclusivamente pelo plano de saúde + estado, mas sua administração é privada. São instituições sem fins lucrativos mas que pagam boa parte de seus funcionários – existe um forte movimento de voluntariado acontecendo por lá – e a qualidade observada é impressionante! Vamos conhecer mais dos residenciais visitados nas próximas colunas.
É importante também falar sobre os medicamentos no país europeu. Quem já conviveu com o envelhecimento – seja o seu ou de seus pais e avós – sabe o quão custoso pode ser o receituário mensal e de uso continuado. Aqui no Brasil muitos medicamentos são dispensados pelo governo, enquanto na Holanda não se trabalha com essa política. Ao invés disso o governo decidiu focar esforços em derrubar o alto custo dos medicamentos com políticas internas, de tributação e também com investimento na fabricação própria desses medicamentos. Muitos hospitais por lá produzem os próprios remédios.
A intenção da nossa delegação em conhecer um pouco mais sobre o que existe próximo do ideal em envelhecimento é plantar novas sementes onde vivemos. Trouxemos na bagagem um conhecimento mais acurado, novas dúvidas e outras certezas, mas principalmente percebemos que há um longo caminho pela frente. A Holanda chegou em um nível onde funcionários de mercados são treinados e instruídos a não chamar a polícia caso um idoso saia sem pagar, pois pode ser um princípio de demência, e não de má fé. Há um longo caminho sim, uma transformação do sistema e do modo de pensar de cada um, mas estudar e aprimorar o que fazemos é a única certeza para um futuro melhor.
Na coluna da semana que vem falaremos um pouco sobre a abordagem do inspetorado do Ministério Holandês de Saúde, responsável pela criação e fiscalização de protocolos em todos os estabelecimentos da saúde no país.
Fique de olho!
Que fantástico, Fernando, amei a sua matéria e toda a informação que ela nos traz. Ansiosa pelos próximos textos. Achei muito bacana saber da Dialog Health também. Sobre a Holanda, lembrei de um livro, “Tentativas de fazer algo da vida”, de Hendrik Groen, um diário supostamente fictício baseado em fatos reais sobre um senho vivendo em uma ILPI holandesa.
Como replicar esse modelo aqui no Brasil? Abrir uma franquia.
É inspirador conhecer realidades como esta da Holanda, mesmo que distantes da nossa no Brasil. Distância esta, imposta por uma diferença gigantesca no volume populacional, alem de todos os outros fatores (tb gigantescos) que explicam as posições no ranking. Mas muito mais inspirador é saber que aqui, no nosso Brasil, ainda com tantas “impossibilidades” existem pessoas como Fernando e sua equipe que estão buscando as sementes da mudança onde quer que elas estejam (nas próprias historias ou nas historias do mundo) para dividir com todos. Parabéns Fernando. Minha admiraçao e gratidão pelas portas que vc tem aberto com seu trabalho e sensibilidade.